quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

FERIAS DE JULHO

(Intruções: Tocar o vídeo abaixo, The Swan, de Camille Saint-Saëns. Começar a leitura).





Noite (esta será a primeira imagem posta sobre a história. Surgirão outras. Esteja habituado à invenção). Era o último dia de carnaval. A cidade fedia como um banheiro público. Em sua memória, moldada a álcool e cocaína, tinha sido uma festa feliz, mas Madalena sabia que não podia esperar muito do que se seguiria, porque seria preciso reaprender as pequenas coisas e ainda tecer as grandes, porque havia dentro dela uma terrível vontade de voltar atrás ou de que tudo aquilo não passasse de uma viagem errada de ácido, a testa aberta de Paulo, ter morrido assim, olhos esbugalhados, moldada na cara a crença que ela não seria capaz disso, “abaixa essa arma, Madalena” enquanto ela pensava nas férias de julho, ser publicamente tratada como lixo, ‘abaixa essa arma o caralho, seu puto’, ela respondeu em pensamento, as mãos dele tremendo de espanto – parece que o tiro pegou de raspão o dedo do meio, detalhe observado pelo legista – e ela perfeitamente sóbria, “lembra das férias de Julho?”, foi tudo o que conseguiu falar, ‘congelada assim uma expressão tão terrível, ele se lembrou’, ela sorriu. Mas hoje era quarta feira de cinzas. Cheiro de mijo. Perambulava pelas ruas como uma barata de Clarice, finalmente chorava, não por ele, mas porque estava louca demais para desconsiderar a culpa, o medo do que haveria de vir, estava triste porque estava fraca. Chegou em casa quase ao amanhecer. Resolveu lavas as vasilhas da pia. Detergente diluído n’água. Ela esfregava talheres de olhos fechados (suas mãos dançavam sobre os pratos? As panelas? Ainda era carnaval?). “Madalena Maria do Carmo”. Gotas de lágrima e pavor. Pancadas secas na porta. “Madalena Maria do Carmo, abra essa porta”. Mais pancadas, um pouco mais rápidos os intervalos entre uma e outra. Era bonito observar o padedê das duas mãos, indo e vindo sem pressa, percorrendo as panelas mais sujas. Cheiro de comida velha. Agora eram ombros e pés que se jogava à porta. ‘É tudo música’, pensou ela, antes mesmo que um barulho mais retumbante emudecesse seus pensamentos. Os olhos permaneceram cerrados. Logo depois do breve pânico repleto de silêncio, a profusão da liberdade: 'Paulo era uma tormenta diária. Eu era seu bibelô humilhado. Paulo não existe mais, acalme-se Madalena. Tudo é sonho'. “A senhora esta presa”.

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